
Vivemos em um tempo onde a tecnologia ultrapassa a funcionalidade e começa a redefinir o próprio ser humano. Como sugeriu Donna Haraway (2000) em seu “Manifesto Ciborgue”, a fronteira entre o orgânico e o sintético se dilui. Hoje, somos todos, de certa forma, ciborgues — seres híbridos que integram tecnologia em suas vidas e até em seus corpos, em formas que moldam comportamentos e relações.
Essa integração nos levou a uma situação peculiar: já somos, em certo sentido, submetidos a uma “supremacia dos robôs”. O paradoxo é evidente quando tentamos realizar algo tão simples quanto um cadastro online, e precisamos provar ao sistema que somos humanos, completando um CAPTCHA (muitas vezes quase impossível e irritante). Ironia da modernidade: temos que demonstrar para uma máquina que somos de carne e osso?
Esse dilema, aparentemente trivial, é, na verdade, um símbolo profundo da nova hierarquia tecnológica, onde nossa autenticidade é validada — ou questionada — por um sistema que nós mesmos criamos.
Para Bauman (2001), esse fenômeno reflete a natureza paradoxal da modernidade líquida: quanto mais controle e estabilidade buscamos, mais nos sentimos inseguros, nostálgicos e presos a essa nova lógica tecnológica, que dita os termos do que é “humano”. A antropofagia tecnológica — devorando e integrando o digital ao ponto de sermos consumidos por ele — é o ponto em que o ciborgue já não é um conceito futurista, mas uma realidade que nos obriga a nos questionar: quem está no controle? Somos nós que controlamos as máquinas, ou as máquinas que nos condicionam?
No contexto do Antropoceno (2020), essa hibridização também se estende ao meio ambiente, onde a natureza se torna sintética, buscando uma fusão em materiais artificiais que simulam ecossistemas naturais. E ao mesmo tempo, assistimos a uma tendência ao “analógico”, o renascimento do impresso e a possibilidade de o TikTok criar uma editora. Este movimento é a resposta ao excesso de conteúdo produzido por algoritmos, repetitivo e despersonalizado. Voltamo-nos para o grid zero e o feed zero (tendência de perfis da geração Z que tem pouca publicação nas redes sociais, preferem mais stories que duram 24h e não deixam rastro, nem excedentes na internet) em busca do que é tangível, da experiência autêntica e do que foge ao controle digital.
A visão de Latour (1994), de que “jamais fomos modernos”, ecoa aqui: por mais que tentemos romper com tradições, nossa identidade se reafirma em cada esforço para escapar do digital e nos reconectar com o físico e duradouro. Somos seres híbridos, e o desejo por raízes e autenticidade permanece, mesmo que os robôs nos obriguem a provar, incessantemente, que ainda somos humanos.
E você, como se sente nessa era em que somos ciborgues, forçados a provar nossa humanidade? Esse paradoxo desperta em você o desejo de reconectar-se com o que é analógico e autêntico? Compartilhe sua opinião nos comentários e participe dessa discussão!
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Referências:
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
Latour, B. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno(1a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Bazar do Tempo, 2020.