ToMoveCom Comunicação e Sites

Traidor: o paradoxo da identidade no teatro da vida

O personagem do espetáculo teatral, Traidor, nos pergunta se ainda somos reais. Mas quem, hoje, pode afirmar o mesmo com certeza? Num mundo onde as máscaras digitais se sobrepõem às feições verdadeiras, onde a intimidade assusta porque expõe rachaduras na persona construída, quem somos quando ninguém está olhando?

Marco Nanini encarna um homem acusado de algo que não cometeu—alguém que se vê exilado, não apenas geograficamente, mas existencialmente. Como no Processo, de Kafka, a culpa é um fardo sem crime, um veredito proferido antes mesmo do julgamento. Aqui, a peça toca na ferida aberta da cultura do cancelamento, esse tribunal digital sem defesa e sem apelação, onde as vozes são silenciadas antes de serem ouvidas.

A traição, então, estaria em quê? No sistema que julga sem provas?

No público que assiste ao linchamento virtual sem questionar? Ou em nós mesmos, que fingimos indignação enquanto seguimos para o próximo vídeo, a próxima polêmica, o próximo espetáculo?

A narrativa fragmentada de Traidor reflete o nosso tempo. Como um feed de redes sociais, tudo se embaralha: o riso irônico se sobrepõe à tragédia, a reflexão profunda se dissolve no próximo anúncio, a indignação cede espaço a um vídeo de dança viral. Não há linearidade, só impulsos. Nietzsche já alertava sobre a tragédia humana: somos consumidos por nossas próprias distrações, incapazes de sustentar um pensamento até o fim antes que ele seja interrompido pela próxima notificação.

Talvez a maior traição seja essa: nos afastamos tanto de nós mesmos que já não sabemos se somos reais. Como Gregor Samsa, em A Metamorfose, um dia acordamos diferentes. Só que, em vez de insetos, nos tornamos avatares, personagens de nós mesmos, moldados por algoritmos que decidem o que devemos ver, como pensar e sentir.

Gerald Thomas descreve Traidor como um híbrido entre Joseph K., de Kafka, e Próspero, de A Tempestade, de Shakespeare. De um lado, a paranoia da burocracia que condena sem explicação. De outro, o mago traído que observa o caos e, ao fim, perdoa. Mas no mundo de hoje, quem tem tempo para o perdão? O rastelo que condena, marcando no corpo, sentenças nas costas que mau podemos saber do que se trata, essa máquina punitória não pára para o perdão, ela segue sangrando.

A grande questão:
no mundo de hoje, somos mais como Joseph K. (O Processo, de Kafka), que sofre uma condenação absurda sem entender o motivo? E nós exigem a capacidade de sermos como Próspero e perdoar, mesmo em meio ao caos?

No contexto da cultura do cancelamento e da fragmentação da identidade digital, a peça questiona: ainda há espaço para redenção? Ou vivemos um tempo onde as punições são definitivas e a compaixão foi substituída pelo espetáculo da punição.

Se estamos sempre fugindo para a próxima distração, como poderemos enfrentar a pergunta essencial que ecoa da peça: nós ainda somos reais? Reais traidores?

Parafraseando Kafka: hoje acordei e a sensação era de 55 graus no Rio de Janeiro, me olhei no espelho e pensei: o mundo acabou, mas Deus esqueceu de mandar um e-mail avisando. Porque, afinal, estamos queimando no inferno – só que com wi-fi.

Mas calma. Ainda resta um mundinho. E nele, você pode assistir a Traidor.  Até dia 9/02, no Centro Cultural da Caixa, RJ.

Essa foi mais uma edição das Quartas do Pensamento, um espaço para refletir sobre os impactos das tendências contemporâneas em nossa vida. Para não perder conteúdos como este, siga nossas redes sociais e assine nossa newsletter.

Oferecimento: ToMoveCom.
Porque não é só oferecer um bom serviço, é fazer você pensar.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *